Janaina Conceição Paschoal
Se a MP 685 for convolada em lei, teremos a situação teratológica de o sujeito poder ser penalmente responsabilizado pela própria sonegação e também pela omissão em declarar a sonegação
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
Em 21 de julho, foi editada a Medida Provisória 685, que instituiu o PROLERIT (Programa de Redução de Litígios Tributários), criando a obrigação de informar à administração tributária federal as operações que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributos.
No que tange aos aspectos tributários, haveria muitos pontos a questionar, sobretudo relativamente à falta de clareza do texto, que sempre permite arbitrariedade e corrupção.
No entanto, essa iniciativa do Governo Federal é especialmente assustadora, pelas potenciais consequências penais. Com efeito, em seu artigo 7º., a MP 685/15 obriga o sujeito passivo da obrigação tributária a apresentar declaração noticiando as operações realizadas no ano calendário anterior, envolvendo supressão, ou redução de tributos, mediante forma não adequada, ou sem razões relevantes.
Esse dispositivo nada mais faz que criar a obrigatoriedade de o sujeito passivo confessar eventuais crimes tributários, o que contraria a Constituição Federal e todos os princípios do Direito Penal, pois ninguém pode ser compelido a se incriminar.
Não se trata da conhecida denúncia espontânea, pois esta, até pela nomenclatura, não é coercitiva, ensejando apenas os benefícios legalmente previstos.
Só por este artigo 7º., a MP já seria inaceitável. Mas o Governo vai além. No artigo 12, a MP estatui que a não observância do artigo 7º caracteriza omissão dolosa, indicando intuito de sonegar ou fraudar os tributos devidos.
Em outras palavras, não confessar um possível crime constituirá um segundo crime, independente do primeiro!
Se a MP for convolada em lei, teremos a situação teratológica de o sujeito poder ser penalmente responsabilizado pela própria sonegação e também pela omissão em declarar a sonegação. Em nenhuma democracia tamanho despautério seria admitido. Isso sem falar na impossibilidade de disciplinar matéria penal, por medida provisória e na subjetividade que, em regra, norteia as autuações fiscais.
Com o afã de salvar a MP, o interprete poderia dizer que o objetivo não seria criar um crime omissivo, mas apenas obrigações fiscais para as pessoas jurídicas. Poder-se-ia, igualmente, alegar que a MP não fala em sonegação, mas em planejamento fiscal.
No entanto, deve-se ter em mente que a legislação penal tributária é complementada pelas normas fiscais. Dado que a Justiça Criminal, no que concerne aos crimes tributários, em grande medida, se transformou em uma instância de cobrança, não há dúvidas de que essas novas regras serão aplicadas para forçar as empresas a pagarem tributos, ainda que não sejam devidos. Ademais, somente a autoridade fiscal terá, ao fim e ao cabo, o poder de dizer o que entende como sonegação e o que, a seu ver, constitui um planejamento aceitável.
Importante ressaltar que não procede o argumento de que teria havido planos correlatos anteriores, como o REFIS. Todos os outros programas previam estímulos para o contribuinte renegociar suas dívidas; e não punições para a omissão em confessá-las.
O quadro se torna mais kafkiano, quando se verifica que o Governo Federal está lançando mão dessa flagrante violência para que os empresários sérios, novamente, paguem a conta pelo rombo causado por sua própria incapacidade de gestão e, quiçá, por suas próprias ilegalidades.
As investigações em curso mostram que os Cofres Públicos foram sangrados, por licitações fictícias, para obras desnecessárias, tudo com o fim de alimentar campanhas políticas daqueles que não aceitam as regras democráticas de alternância no Poder.
Agora, cria-se, por Medida Provisória, o crime de omitir confissão de crime!
A MP é técnica e moralmente insustentável. Cometem-se todos os tipos de desmandos e os empresários que não têm lobistas, que não têm apoio do BNDES e não são amigos de atuais e ex-detentores de poder, serão ameaçados com inquéritos e processos criminais, para cobrirem um buraco que não criaram e do qual não se beneficiaram. Indiretamente, também empregados e consumidores pagarão a conta.
O autoritarismo não se perfaz apenas por meio de torturas, ele se estabelece mediante processos inconstitucionais, ilegais e ilegítimos, bem como pela descarada expropriação. O Congresso tem que ter a coragem de rapidamente dizer não a esse golpe!
*Janaina Conceição Paschoal é advogada e Professora Livre Docente de Direito Penal na USP. Autora de Ingerência Indevida: os crimes comissivos por omissão e o controle pela punição do não fazer. Porto Alegre: Fabris, 2011.
Fonte: Migalhas
Data: 26/08/2015