Mudança progressista na lei penal favoreceu abusadores de mulheres

Por: Nohara Paschoal

Atendendo a grupos de pressão, tratar o atentado ao pudor como estupro não recrudesceu, mas suavizou a punição a abusadores de mulheres.

De tempos em tempos, casos envolvendo abuso sexual chocam o País. Há pouco mais de um ano, foi o estupro coletivo, ocorrido no Rio de Janeiro, de uma jovem de 16 anos, filmado e divulgado nas redes sociais. Não demorou a que se bradasse por alteração legislativa, com a criação de um tipo penal específico de estupro coletivo, com punição maior, como se a causa dos estupros fosse a ausência de lei.Recentemente, situação envolvendo ofensa sexual volta a ser assunto, desta feita, em função do agressor, que ejaculou no pescoço de uma mulher dentro do ônibus, preso pela Polícia, ter sido liberado pelo Juiz, no mesmo dia. O magistrado entendeu não se ter caracterizado crime de estupro, pela suposta falta de contato, ou violência. Uma vez mais, bradam por alteração legislativa, como se a agressão decorresse da ausência de lei.Ainda que o tipo penal do estupro abarque situações de violações de gravidade díspares – o que justificaria uma revisão legislativa – entendo que reforma legal não mudará o modo como agressões sexuais são tratadas pelo Poder Judiciário. Sendo a maior parte das vítimas mulheres, enfrenta-se a questão com pouco caso.No ano de 2009, entrou em vigor a Lei 12.015/20009, que trouxe significativas mudanças para os crimes sexuais. Dentre elas, a que reuniu, em um único dispositivo legal, as antigas figuras de estupro e atentado violento ao pudor.Com efeito, até 2009, havia no nosso ordenamento o crime de estupro, em que o sujeito constrangia a mulher à prática de conjunção carnal (introdução do pênis na vagina); e o crime de atentado violento ao pudor, em que o sujeito constrangia alguém – homem ou mulher – a praticar ou permitir que se praticasse ato libidinoso diverso da conjunção carnal.  A pena prevista para ambos os crimes era de 06 a 10 anos de reclusão.A partir de 2009, o artigo 213 do Código Penal passou a contemplar tanto a conjunção carnal forçada, como outros atos atentatórios à liberdade sexual do indivíduo, não mais havendo distinção entre vítima homem e mulher. A pena prevista para o novo tipo penal foi mantida, 06 a 10 anos de reclusão.

Importa consignar que a reforma legislativa foi vendida à população como mais repressiva, ou seja, alardearam que implicaria punição mais rigorosa ao agressor sexual. Propagou-se, ainda, a ideia de que a legislação anterior era antiquada, impregnada de concepções preconceituosas, lastreadas em moralismos, a começar por distinguir crimes a depender da condição da vítima, se homem ou mulher.

Pois bem, o fato é que a nova legislação, ao ser concretizada pelo Poder Judiciário, isto é, aplicada a situações efetivas de ofensas sexuais, não implicou recrudescimento, mas suavização de punição, pelo menos em causas envolvendo violações múltiplas contra uma mesma vítima.

Explico: se antes da alteração legislativa de 2009, um agressor que constrangesse a mulher à conjunção carnal e a coito anal forçados era majoritariamente punido pela prática de dois crimes – estupro e atentado ao pudor – apenado, no mínimo, com 12 anos de reclusão, isto é, 06 anos para cada; após a reunião das antigas figuras em um único dispositivo legal, majoritariamente, o agressor da vítima mulher que a constrangeu a violações múltiplas – conjunção carnal, coito anal e oral – passou a ser condenado por um único crime de estupro, apenado, na imensa maioria, com pena mínima de 06 anos de reclusão.

Tal constatação não é fruto de achismo, mas decorrente da análise de mais de 2200 acórdãos (decisões judiciais colegiadas), coletados junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, que integrou dissertação de mestrado, focada no impacto do novo estupro na punição de violações múltiplas, em detrimento de uma mesma vítima, em um mesmo contexto[1].

Grosso modo, a jurisprudência majoritária entende que estando reunidas, em um único dispositivo legal, as condutas da conjunção carnal forçada e de qualquer outro ato libidinoso forçado, pouco importa o número de atos praticados contra uma mesma vítima. Um, dois ou mais, a multiplicidade dos atos não implica multiplicidade de crimes.

É bem verdade que o homem pode ser vítima de agressões sexuais múltiplas, em um mesmo contexto, por exemplo, ao poder ser constrangido ao coito anal e à prática de sexo oral.

Não obstante, até por uma diferença biológica, pois só a mulher possui vagina, evidente ser ela muito mais suscetível a atos sexuais múltiplos, em um mesmo contexto fático-temporal.

Um dos casos analisados, quando do estudo jurisprudencial, mostrou que o agressor que praticou contra uma mesma vítima conjunção carnal, coito anal e oral forçados foi punido com seis anos de reclusão.

O que mais surpreendeu, contudo, foi que o agressor, após praticar todos os atos sexuais contra a vítima, roubou dela a quantia de R$ 10,00 (dez reais) e um bilhete múltiplo de passe de ônibus. A pena para o roubo praticado: 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses, de reclusão.

Da análise deste específico, concluiu-se que ou o patrimônio tem sido muito valorizado pelo Poder Judiciário ou, o que parece mais plausível, a dignidade sexual do indivíduo, sobretudo da mulher, tem valido muito pouco.

Não é razoável que a vítima, constrangida à violência sexual de todas as modalidades possíveis, para ver o seu agressor punido de forma mais proporcional (e justa), tenha que torcer para ele levar consigo qualquer objeto (ou quantia, ainda que de ínfimo valor).

É injustificável que se admita punir com penas praticamente idênticas o roubo de R$ 10,00 (dez reais) e a prática de coito anal, oral e vaginal praticados contra uma mesma vítima[2].

Reputar que a cada ato sexual praticado forçadamente, mediante violência ou ameaça, não se viola, novamente, a dignidade sexual da vítima, implica restringir o significado de dignidade sexual.

A dignidade sexual não significa só a liberdade de escolha do parceiro com quem se quer se relacionar, mas, principalmente, diz respeito às práticas sexuais da preferência de cada um, sendo evidente que cada ato sexual não admitido e praticado forçadamente é passível de violar o valor representado pelo crime do estupro.

Negar tal vertente da disponibilidade sexual significa não vislumbrar a ocorrência de estupro na situação de prática de coito anal ou oral forçados, após prática de uma conjunção carnal consentida. E vice-versa, ou seja, prática de conjunção carnal forçada, seguida de coito anal ou oral consentidos.

Uma lei que veio a pretexto de melhor proteger a liberdade sexual da vítima, quando concretizada, findou por deixá-la desprotegida.

Punir atos sexuais múltiplos como crime único resta insuficiente, pois não se tutela, de forma plena, a liberdade sexual do indivíduo. Podendo-se, inclusive, vislumbrar estímulo à prática de lesões mais reprováveis.

Nota-se, desta feita, que alterações legislativas podem frustrar expectativas, principalmente porque o direito, mesmo o penal, é sujeito a interpretações.

Iniciou-se o texto relembrando o caso do estupro coletivo, ocorrido no Rio de Janeiro, que após forte comoção social, culminou na aprovação de um projeto de lei, pelo Senado, do crime de estupro coletivo, com previsão de penas mais altas.

É paradoxal buscar alteração legislativa para punir de forma mais severa o estupro praticado por mais de um agente, quando se fecha os olhos para a interpretação que permite tratar como unidade delitiva a prática de agressões múltiplas, por um único agente, em detrimento da mesma vítima.

Uma vez subjugada, sob a perspectiva da vítima, não há diferença se as diversas violações a que submetidas são perpetradas por um único ou vários agentes. A cada ato sexual forçado, afrontada está a dignidade sexual da vítima, independentemente do número de agressores envolvidos.

Voltando ao caso recente, da ejaculação no pescoço da moça, dentro de um coletivo, com todo o respeito, não se trata de ausência de lei. O problema é a interpretação que se quer conferir à norma.

Por mais que o princípio da legalidade seja uma proteção para todos os indivíduos perante o Estado e, por mais que seja desejável uma descrição bastante rigorosa das condutas proibidas, resta impossível descrever todos os atos atentatórios à dignidade sexual potencialmente praticáveis. Como haveria de ser a lei? Ejacular, introduzir um dedo, introduzir dois dedos, e assim sucessivamente?

Ao falar em ato libidinoso, com violência ou grave ameaça, o legislador quis proteger a vítima integralmente de qualquer ato libidinoso não consentido. E, ao que se sabe, o agressor não pediu autorização antes de ejacular.

No caso em tela, o desdém fica evidenciado não só com relação à vítima concreta, mas frente a todas as outras. Digo isso porque o magistrado teria instrumentos, ao menos, para verificar a sanidade mental do agressor e, a depender do resultado, determinar medidas de tratamento. Importante destacar que havia ocorrido uma série de agressões anteriores e a natureza das ocorrências já indicava algum tipo de inimputabilidade.

Ainda que se considere a interpretação conferida pelo magistrado, haveria a possibilidade de ele acionar a esfera cível, com o fim de uma interdição não penal. Em resumo, interpretou-se a lei contrariamente à proteção da vítima e deixou-se de fazer algo para evitar vitimizações futuras que, em pouco tempo, se verificou.

Quando criam as leis, os legisladores buscam um fim, que fica materializado nas justificativas dos projetos e nas exposições de motivos das próprias normas. O Estado juiz, entretanto, não fica vinculado por essa vontade do legislador e, no que tange aos crimes sexuais, ao que parece, prefere desprezá-la.

 

Fonte: Senso Incomum

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